A série de entrevistas “Rompendo o Silêncio” teve a honra de conversar com Danielle Oliveira Bargas.
Danielle é atriz de rua, pedagoga, educadora popular em saúde e arteterapeuta.
Nesta entrevista, Danielle traça um precioso panorama histórico sobre a Reforma Psiquiátrica brasileira e a Luta Antimanicomial, mostrando como a arte e terapia podem assumir o protagonismo no tratamento de um usuário de saúde mental. Mais que isso, nos conta que para “ combater o preconceito é preciso conhecimento, informação, relação, afeto”.
O que prega a luta antimanicomial?
É preciso compreender que a Luta Antimanicomial é o processo cotidiano do exercício da
Reforma Psiquiátrica. No final da ditadura militar brasileira (1964-1985) a participação social tornou-se manifesta e, consequentemente as lutas sociais tomaram fôlego clamando por um modelo de proteção social pautado na concepção de Seguridade Social, onde todos tivessem acesso às Políticas Públicas.
No que toca, especificamente, a política social de saúde, foi instituído o Projeto da Reforma
Sanitária – como uma forma institucionalizada dos movimentos sociais –, onde os integrantes almejavam que o Estado atuasse em função da sociedade, responsáveis pelas políticas sociais. Destacavam-se como fundamentos desse Projeto a democratização do acesso à saúde, a universalização das ações, a descentralização, a melhoria da qualidade dos serviços como adoção de um novo modelo assistencial baseado no princípio da integralidade, da equidade das ações e da participação social.
Neste processo, por volta de 1978, surge o principal protagonista da Reforma Psiquiátrica
Brasileira, o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental. Frente a essas denúncias e reivindicações, o movimento foi ganhando corpo, inspirando-se principalmente no movimento chamado Psiquiatria Democrática Italiana, que exerceu grande influência sobre os movimentos Reformistas da América Latina, a partir do trabalho realizado
pelo seu precursor, o médico e psiquiatra italiano Franco Basaglia, que quando assumiu a
direção do Hospital Psiquiátrico de Gorizia (pós-guerra, 1961), iniciou mudanças no modelo
de assistência psiquiátrica e nas relações entre a sociedade e a loucura.
Basaglia compreende a complexidade da loucura como algo inerente à condição humana e
que vai além do domínio da psiquiatria, dizendo respeito ao sujeito, à família, à comunidade e demais atores sociais. Apresentando uma contestação radical à psiquiatria sobre a doença mental apontando as estruturas sociais, a cultura e as relações como disparador da patologia e afirmando que a loucura pode também ser um estado de libertação e renovação. Assim, movidos pela militância ideológica e política com referência nas reformas realizadas em outros países, a Reforma Psiquiátrica Brasileira propõe uma rede territorial de serviços de atenção psicossocial (CAPS), centros de convivência e cultura, cooperativas de trabalho e renda (economia solidária) e residências, para que seja possível práticas terapêuticas junto a família e a comunidade, conscientizando a sociedade que pessoas portadoras de transtornos mentais não representam uma ameaça, e garantindo que essas pessoas em sofrimento não fossem mais tratadas como objeto da medicina, afirmando a condição humana e cidadã.
Em 18 de maio de 1987 foi realizado um encontro com grupos coniventes à essas políticas
antimanicomiais. Neste encontro nasceu a proposta de reforma no sistema psiquiátrico
brasileiro e foi estabelecido que aquela data fosse o dia da Luta Antimanicomial.
Como você vê o preconceito com relação à “loucura”? O que pode ser feito para
combatê-lo?
Para iniciar essa conversa é importante nos perguntarmos “O que é a loucura?”.
Popularmente, a ausência da saúde mental ou o sofrimento da mente é visto como loucura
(emoções descontroladas), que são sentimentos desagradáveis que podem afetar severamente o nível de funcionamento do organismo como um todo. Quando nos relacionamos com estes sentimentos percebendo-os como uma experiência ampla e variada, compreendemos que há formas diversificadas e relativas de concebê-los a partir de
diferentes grupos sociais que possuem linguagens particulares para defini-los. Isso porque é possível notar que existem inumeráveis práticas culturais e linguagens sociais que constituem códigos que regulam a relação com os outros e com a participação social.
A Organização Mundial da Saúde se refere à saúde como um estado de completo bem-estar físico, psíquico e social (OMS, 1946). Por isso o conceito de saúde/ doença mental é amplo, e nem sempre de fácil definição, ou identificação daquilo que a determina.
“A saúde mental tem sido cada vez mais entendida como o produto de múltiplas e complexas interações, que incluem fatores biológicos, psicológicos e sociais”. (ALVES; RODRIGUES, 2010). Portanto são fatores sociais, econômicos, culturais, étnicos, psicológicos e comportamentais que influenciam a ocorrência de problemas de saúde e seus fatores de risco na população.
Nenhuma dessas visões foi suficiente para quebrar o estigma que acompanha o louco. Estigma este que o faz ser percebido como o insensato, como uma pessoa não merecedora de crédito. Van Gogh, pintor holandês de obras impulsivas e expressivas que contribuíram para a fundação da arte moderna, sofria de episódios psicóticos e de alucinação, foi diagnosticado depressivo. Internado em diferentes instituições psiquiátricas, ficou famoso depois do seu suicídio. Nos revelou que “o louco é o homem que a sociedade não quer ouvir e que é impedido de enunciar certas verdades intoleráveis”.
Nise da Silveira, médica nordestina brasileira, reconhecida mundialmente por sua
contribuição à psiquiatria, desenvolveu um trabalho com pacientes internados em instituições manicomiais na qual se buscava a cura por meio da arte, afirmando que a perspectiva para a um tratamento eficaz se dá por meio da ausência de preconceito. “O que melhora o atendimento é o contato afetivo de uma pessoa com outra. O que cura é a alegria, o que cura é a falta de preconceito”.
Para tanto, combater o preconceito é preciso conhecimento, informação, relação, afeto.
Como você avalia as políticas públicas de Saúde Mental no Brasil atualmente? Qual
a sua avaliação hoje sobre a atuação e as condições dos serviços de saúde mental,
tanto em termos práticos como em relação à visão social, ideológica e política que os
sustenta?
As políticas públicas de Saúde Mental, embora os enfrentamentos, processos de lutas e
avanços, de maneira geral (por que é difícil analisar visão ideológica, política e social em um Brasil de territórios tão plurais), ainda sofrem do processo colonizador no qual o Brasil foi submetido. Para compreender, e nos reconhecer como sujeitos fruto da história, é preciso entender que as primeiras ações de saúde pública implementadas pelos governantes no Brasil, foram executadas no período colonial com a chegada da família real, e tinham como projeto institucionalizar o setor da saúde. Neste período, o povo brasileiro constituía-se de portugueses, outros imigrantes europeus e, principalmente, indígenas e negros escravizados.
Cada um desses grupos detento de uma cultura própria, costumes e tradições e um
conhecimento, também próprio, acerca das doenças e formas de tratá-las. No mesmo ano da chegada da família real (1808), foi inaugurada a primeira faculdade de medicina a fim de normatizar a prática médica em conformidade com os modelos europeus, que resultou no controle das práticas populares, e a constituição de hospitais públicos para atender doenças consideradas nocivas à população e de necessário controle do estado, como também eram vistas as doenças mentais.
Em 1852 foi inaugurado o primeiro hospital psiquiátrico brasileiro com o objetivo de tratar
medicamente a loucura. Denominado Hospício Pedro II (onde Nise da Silveira atuou na década de 40), em homenagem ao príncipe regente que nesse mesmo dia foi sagrado e
coroado como Imperador do Brasil.
“Nesse período, o interesse pela saúde e pela regulamentação da prática profissional esteve relacionado ao interesse político e econômico do Estado de garantir sua sustentabilidade e a produção da riqueza” (BAPTISTA, 2003).
No século XVII os manicômios abrigavam além dos doentes mentais também os demais
marginalizados da sociedade. Da prática psiquiátrica tradicional à Reforma Psiquiátrica, na década de 70, há uma trajetória que perpassa períodos em que o tratamento à pessoa em sofrimento por doença mental ou considerada louca, envolvia confinamentos, intervenções cirúrgicas mutiladoras e eletrochoques; até, depois de anos de lutas e reivindicações da sociedade organizada, alcançar o resgate de direitos humanos e a humanização dos cuidados terapêuticos, reunindo, além dos profissionais da saúde, a família e a comunidade.
No Manicômio de Barbacena, crianças recebiam o mesmo tratamento que adultos. Fonte:Wikimedia Commons.
Os grupos de pressão, decisores e legisladores se debruçaram sobre os caminhos da
desinstitucionalização, a partir dos anos 90. Dentro de um significado mais abrangente, a desinstitucionalização, é atribuída a atenção à saúde mental, e convoca uma rede comunitária de cuidados em permanente articulação no território na busca da emancipação das pessoas que sofrem mentalmente, da promoção da autonomia e cidadania, resgatando saberes e potencialidades da comunidade no trato com o sujeito adoecido, elaborando trocas e construindo coletivamente soluções através do acolhimento, do fortalecimento destes sujeitos, reintegrando-os na comunidade, fomentando o direito de circular nos espaços da cidade. Mais do que um tratamento, consiste no desenvolvimento da pessoa.
Com um novo propósito para o indivíduo em sofrimento psíquico, para garantir sua cidadania, com respeito a seus direitos e sua individualidade, e promovendo sua participação social, é necessário modificar o sistema de tratamento da doença mental, substituindo o modelo de asilamento por uma rede de atenção psicossocial. Atualmente, e segundo o relatório da Reforma Psiquiátrica e Política de Saúde Mental do Brasil, um dos principais desafios é a formação de recursos humanos capazes de superar o paradigma da loucura. Trata-se, portanto, de uma ação pedagógica em Saúde Mental.
Por que é tão importante a gente falar dessa temática da Luta Antimanicomial,
Reforma Psiquiátrica, Saúde Mental hoje em dia?
O modelo tradicional de asilamento é segregador e leva a pessoa que está sofrendo com a
doença mental ao isolamento, a perdas de referências sociais e ao recrudescimento da doença. Esse modelo é resultado do confinamento hospitalar e de uma psiquiatria que não se interessa pelo drama vivido pelas pessoas que passam por situações de desestruturação psíquica, limitando-se somente aos sintomas aparentes, e ao combate do estereótipo do louco. Na tentativa de apagar as marcas da doença mental, inibe-se a expressão, destruindo a pessoa com seus desejos, vontades e sonhos.
A institucionalização rompe com o sujeito ao anular suas formas de se integrar socialmente,
dela resulta um indivíduo coisa, embrutecido pelo controle de seu corpo imposto pela
instituição.
Qual o papel da terapia na vida de um usuário de saúde mental?
Creio que somos todos sujeitos de promoção e manutenção da saúde mental, independente se há alguns usuários dos serviços que realizam o trabalho de acolher e fortalecer pessoas em sofrimento. Práticas terapêuticas são fundamentais para o desenvolvimento do indivíduo e da sociedade, sobretudo as expressivas, que colaboram na construção de seres mais criativos, portanto saudáveis.
No curso da história a arte está para o desenvolvimento humano e coletivo. A arte sempre foi a forma de comunicar a observação do mundo, para que o homem pudesse intervir e
transformá-lo.
Atualmente, e de forma geral, o que se tenta alcançar por meio da terapêutica expressiva no tratamento de doenças mentais é a valorização do sujeito e sua capacidade de criar, uma espécie de reintegração-criadora através da arte, de forma que ele possa projetar seus conflitos internos e consequentemente expressar sua subjetividade reinventando a vida em seu âmbito cotidiano.
Para Wanderley (2002), a arte é um caminho que estreita a relação entre a loucura e a saúde através da criatividade. Criatividade é entendida por ele como o movimento contra a repetição e a estereotipia; um ato que amplia as possibilidades do sujeito apresentando-o a uma nova modalidade de apreensão do mundo por meio da ampliação do contato afetivo com a realidade.
De acordo com os estudos e produções de Nise da Silveira, descobriu-se que as imagens
pintadas pelos ditos loucos expressavam os afetos. Afetos não como simples emoções, mas como acontecimentos vitais que indicavam a capacidade de existir e o potencial autocurativo existente na mente. O que teria sido feito nesse trabalho para que as manifestações de forças curativas pudessem acontecer em um ambiente tão hostil que normalmente é o hospital psiquiátrico? A hipótese está em um ambiente de compreensão e apoio, onde nunca houve grades e seus frequentadores eram chamados pelo nome; com ênfase em atividades expressivas, não verbais, e a liberdade como forma de tratamento.
Emygdio de Barros pintando no jardim do hospital. Fotos: autores desconhecidos/Arquivo Nise da Silveira
Mais sobre Danielle Oliveira Bargas:
Especialista em Arte, Ciência e Cultura na Saúde pela Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ); Laboratório de Inovações em Terapias, Ensino e Bio Produtos (LITEB).
Pesquisadora de metodologias para a saúde coletiva com experiências exitosas fundamentadas na arte enquanto método para promoção de saúde mental.
Artista-Educadora, Aprendiz e Colaboradora das ações da Universidade Popular de Arte e Ciência (UPAC).
Articuladora comunitária. Colaboradora do Bloco de carnaval e formação popular Doido é Tu!, que reúne trabalhadores e usuários dos serviços públicos de saúde mental e comunidade na cidade de Fortaleza, Ceará.
Estudante de Práticas Integrativas e Complementares de Saúde.
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