O “Rompendo o Silêncio” entrevistou a roteirista Natália Targino.
Natália é roteirista há 8 anos e trabalha com eventos corporativos. Diagnosticada hiperativa, é entusiasta de assuntos da mente, de neurociência à psiquiatria.
Nesta entrevista, Natália traça um olhar do ponto de vista do criador em relação à abordagem de temáticas históricas de cunho político-social no entretenimento. “Gerar reflexão é uma conquista: é um indicador de que a história tocou a audiência. Especialmente no audiovisual e na escrita literária, o cerne das narrativas conduz a raciocínios que fazem com que até mesmo um público menos interessado em investigar um dado tema, acabe dando atenção a ele em seu momento de lazer.”
Como o roteiro audiovisual surgiu na sua vida?
Quando criança, eu me destacava como aluna, especialmente em matéria de redação. Era fã do Steven Spielberg nessa época, sabia que queria trabalhar com ele, mas não entendia como. Aos 15, numa epifania, concebi que todas as histórias que brotavam espontaneamente em minha cabeça, quando obcecada por uma música, necessitariam de uma duração muito maior que o tempo de tais músicas. E assim, fui arrebatada pelo sonho de criar séries audiovisuais.
Silêncio dos Afogados” traz o universo dos manicômios e da saúde mental no Brasil no século XX. Como você enxerga a abordagem de temáticas históricas de cunho político-social no entretenimento?
Essas temáticas, quando apresentadas juntas, revelam ao público os bastidores de uma realidade que ele não vê! A história por trás da história. O quanto a indiferença de nossos representantes se reflete na indiferença da sociedade para com seus pares. Quem tem poder e é eleito, acaba por legitimar um discurso que será reproduzido por aqueles que antes concordavam silenciosos.
Eu acredito que a arte é o melhor caminho para mudar a cultura, porque através dela, catalisamos emoções e cativamos o interesse do público para os temas abordados. E dependemos desse interesse genuíno para mobilizar as lutas e ações por mudanças.
Você acredita que séries também devem gerar um espaço de reflexão?
Gerar reflexão é uma conquista: é um indicador de que a história tocou a audiência.
Especialmente no audiovisual e na escrita literária, o cerne das narrativas conduzem a raciocínios que fazem com que até mesmo um público menos interessado em investigar um dado tema, acabe dando atenção a ele em seu momento de lazer.
Enquanto nas escolas jovens dormem nas aulas de geopolítica, no cinema, esta mesma amostra se entusiasma para "ver de perto" soldados da 2ª Guerra mundial, Snipers no Iraque; enquanto jovens fogem das aulas de matemática ou computação, vão ao delírio com os filmes da vida de John Nash e Alan Turing.
Objetivamente, o público se propôs a consumir entretenimento para seu lazer, mas indiretamente, o público tem uma nova oportunidade de adquirir experiências, sendo transportado a um novo universo, como se testemunhasse aqueles eventos, e isso lhe abre a mente para novas questões.
"O Jogo da Imitação" - filme sobre o gênio Alan Turing
O quanto temáticas assim podem impactar o público?
A história dos manicômios demonstra ao público como o poder político tem vários tentáculos e, em casos de descaso pelas questões sociais, barbaridades do lado sádico da natureza humana têm passe-livre para atuar.
Esse fato triste, de desprezo pelo sofrimento alheio, nos deixou o legado do estigma social que faz com que acometidos de transtornos e doenças mentais, como a depressão, escondam seu sofrimento – embora não seus efeitos catastróficos sobre si e sobre a sociedade.
Como as mudanças políticas pelas quais o país passou ao longo da história afetam o processo de escrita?
Todos nós, que já passamos pelas aulas de Literatura, somos apresentados ao contexto histórico para entender o contexto e a essência das obras de arte das Escolas Literárias. E conhecemos o tal jargão “A arte imita a vida”.
Como exemplo claros, temos o Iluminismo, que marcou o fim da chamada Idade das Trevas, que ocorreu na Europa, mas sua penumbra provocou mudanças políticas radicais no Brasil. E a censura da ditadura militar, que virou tema de mensagens subliminares nas canções de nossos artistas contemporâneos.
Se antes essas manifestações se refletiam nas arquiteturas, esculturas, músicas, quadros e poemas, no presente, mídias digitais, bem como as séries, entram como mais uma janela catártica para a expressão artístico-social do nosso momento histórico.
Como espectador, o que lhe instiga numa narrativa? Poderia falar um pouco sobre as suas influências?
A mim, o que mais instiga são principalmente três fatores:
O primeiro é o que chamo de “filme de galera”:
Adoro assistir a Cidade de Deus, Piratas do Caribe, Bastardos Inglórios, TBBT, Bacurau, Lost e ficar em dúvida sobre quem é realmente o protagonista, porque cada personagem é tão brilhante e tão crucial para o desfecho, que se tirasse um deles, a história necessariamente mudaria, tal como demonstrado a cada morte em Game of Thrones.
Amo multiplot!
O segundo é como pequenas ações, às vezes até ingênuas, viram uma avalanche de consequências:
Elas envolvem todas as pessoas ao redor, como no episódio A Coroa do Imperador, de Cidade dos Homens, ou as trapalhadas do Esquilo de A Era do gelo e, claro, Black Mirror.
E terceiro, na verdade, é a ausência de um vício de cinema: as reações desmotivadas:
É tão comum ver personagens sendo convencidos a enfrentar desafios arriscados por motivos quase aleatórios, explosões de emoções por gatilhos ridículos: socos virando contra-argumento entre pessoas civilizadas, barulhos aleatórios em filmes de terror, beijos desesperados sem paixões comprimidas.
Eu gosto de sentir, junto com os personagens, como os vínculos se constroem, dependo disso para acreditar na história e nela enxergar personas e não atores.
Um filme que lhe chamou atenção pelo roteiro cujo universo trouxe à tona algum recorte do nosso passado?
Nessa hora eu sou tentada a listar a filmografia do Spielberg – Amstad, A Lista de Schindler, A Cor Púrpura, O Resgate do Soldado Ryan, Lincoln, The Post, porque a sensibilidade desse gênio cativa-nos a olhar para cada protagonista dessas angústias com intensa ternura e empatia.
Mas se é para escolher um filme, então devo invocar John Ridley, por 12 Anos de Escravidão.
Esse filme, mesmo sutil (comparado à realidade da época), me fez agonizar por tanta injustiça. O quanto seres humanos tiveram de ser brinquedos de sadismo de tanta gente perversa, sem ninguém a quem recorrer.
Separações de famílias, estupros, assassinatos, torturas físicas, psicológicas, afetivas.
É desesperador ver que até hoje tantos humanos, mesmo sendo muitos, não têm voz! É inevitável comparar o passado com o presente.
Há algum tema que você gostaria de escrever ou ver numa série?
Gostaria de ver um filme-documentário que mostrasse o efeito cascata dessa pandemia atual nos diversos domínios da vida. O quanto as quantidades e tipos de crimes e de mortes mudaram. Como novos hábitos e mercados surgiram ou ganharam visibilidade. O quanto questões como violência e preconceito tiveram seu estopim nesse momento. O quanto isso desmascarou o que diversos políticos diziam estarem preparados para lidar com adversidades e o quanto contribuíram para o caos.
Seria maravilhoso ver um dossiê sociológico sobre esse momento [licença para um comentário estético: adoro imagens de retrospectivas].
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