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Silêncio dos Afogados

Rompendo o Silêncio: Entrevista com Julia Bartsch

O “Rompendo o Silêncio” entrevistou a psicanalista e psicóloga Julia Bartsch.


Julia integra o Grupo Veredas dentro do Laboratório de Psicanálise, Política e Sociedade e é mestranda em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da USP. Além de atuar em consultório particular e na atenção a populações vulneráveis em diferentes projetos em São Paulo, desde 2008 já esteve em projetos de Saúde Mental junto a grandes organizações humanitárias internacionais,sendo a atuação mais recente a posição de Referente Técnico em Saúde Mental em respostas ao COVID-19 no Brasil.


Nesta entrevista, Julia fala sobre como seria uma rede efetiva de atendimento em Saúde Mental e discute a importância do Estado no cuidado de pessoas com doença mental e no apoio às famílias. “O cuidado da saúde mental é tão importante quanto o cuidado da saúde física. Ter um amparo do Estado não só para casos graves, mas para atenção preventiva é fundamental como parte de uma política pública de cuidados. Lembremos que transtornos mentais estão entre as maiores causas de incapacitação e portanto, cuidar dela é essencial.”



“Silêncio dos Afogados” traz o universo dos manicômios e da saúde mental no Brasil no século XX. Como você enxerga a abordagem de temáticas históricas de cunho político-social no entretenimento? Acha que o cinema e a TV podem ser um espaço de reflexão?


Penso que é importante trazer ao público uma realidade que pouco seria conhecida de outra forma ou que é percebida de forma distorcida por clichês ou por preconceitos. Filmes como "Bicho de Sete Cabeças" ou o biográfico sobre Nise da Silveira permitem que se resgate o humano de uma população institucionalizada e que só por esse fato passa a ser percebida como menos humana e acabe assim sendo tratada sem levar em conta que há ali uma pessoa envolta de uma série de sofrimentos.



Filme "Bicho de Sete Cabeças"

Tanto o cinema ou a TV, desde que se proponham, tem força para ser um espaço não só de reflexão mas de transformação, da mesma maneira como eles têm força, de forma negativa, para perpetuar ideias preconcebidas.



Filme "Nise"


Fala-se em Holocausto Brasileiro quando se refere à história de algumas unidades de saúde mental como o hospital Colônia, em Barbacena, onde dezenas de milhares de pessoas morreram privadas de seus direitos humanos. Na sua opinião, o que avançou na luta antimanicomial ao longo dos anos?


Hoje, podemos dizer que há maior conscientização sobre a relação entre saúde mental e tratamentos que promovam uma atenção bio-psico-social. Ou seja, procura-se deixar a ideia do alienado, que é como os indivíduos internados nos antes chamados hospícios eram classificados, para pensar num indivíduo que, apesar de transtornos mentais que o colocariam como alguém não pertencente à dita normalidade, tem também outras necessidades no que diz respeito aos cuidados com sua saúde física, a compreensão de como funciona seu psiquismo e as possibilidades de estar inserido numa sociedade de maneira funcional a despeito das limitações que possam existir.


Assim foram criados os CAPS, Centro de Atenção Psicossocial, atendendo a pessoas de todas as idades. Nesses espaços, o cuidado clínico é oferecido com a característica de não ser um lugar de hospitalização, mas sim de reinserção social. A privação dos direitos humanos está ligada justamente à desumanização dessas pessoas e por isso é tão importante ter esse olhar que não perca de vista o humano que está ali. A normalidade, inclusive, é um conceito que pode variar de cultura a cultura, de tempos em tempos.


Qual a importância do Estado no cuidado de pessoas com doença mental e no apoio às famílias?


O apoio às famílias é fundamental. Indivíduos com transtornos mentais graves influem na dinâmica de cuidadores e familiares e de acordo com a complexidade do caso, os cuidadores podem não ter todos os recursos necessários para garantir a atenção demandada por aquele indivíduo. Eventualmente, essas pessoas acabam por ser abandonadas ou institucionalizadas por prazo indefinido, em geral muito longos e com o desaparecimento gradual de familiares.


Por isso, não basta oferecer recursos para o indivíduo em si, mas também promover amparo não só às famílias como no sentido de sensibilizar a comunidade para o acolhimento de alguém que, dentro de suas características, pode estar integrado nela. O cuidado da saúde mental é tão importante quanto o cuidado da saúde física. Tem um amparo do Estado não só para casos graves, mas para atenção preventiva é fundamental como parte de uma política pública de cuidados. Lembremos que transtornos mentais estão entre as maiores causas de incapacitação e portanto, cuidar dela é essencial.


Como seria uma rede efetiva de atendimento em saúde mental?


A rede deve considerar desde a atenção básica, como psicoterapia, psiquiatria, transtornos mentais leves, passando por amparo a cuidadores, atenção ambulatorial, tendo o CAPS como um grande braço dessa rede, bem como hospitalizações humanizadas, com equipes devidamente sensíveis à presença do ser humano que está ali para receber cuidados. A atenção básica, inclusive, tem uma importância fundamental para evitar que transtornos mais graves se desenvolvam. Não há saúde sem saúde mental!


Qual o papel da família na vida e no tratamento de um usuário de saúde mental?


O papel da família é, por si só, uma referência forte para qualquer indivíduo. É preciso, obviamente, entender qual o contexto daquele núcleo familiar, se a estrutura em si tem saúde para cuidar da saúde de alguém. Há uma relação intrínseca entre indivíduo e o grupo ao qual ele pertence, sendo a família o mais emblemático desses grupos. Dentro desta família, cada membro tem também sua própria história, suas dificuldades e sua maneira de se envolver com o cuidado de alguém. Assim, reconhecer em quais condições essa família funciona, seja ela do ponto de vista da saúde mental, seja pelo aspecto socioeconômico e cultural, é um ponto importante para que se avalie de que maneira essa família pode oferecer suporte para aquela pessoa com algum transtorno mental mais grave. Em tempo, ser usuário de saúde mental, como está na pergunta, é um termo equivocado. Em tese, seria dizer que se está usando a saúde mental e que bom! Melhor dizer "no tratamento de um usuário da rede de cuidados de saúde mental", por exemplo.


Por que é tão importante a gente falar dessa temática da Luta Antimanicomial, Reforma Psiquiátrica, Saúde Mental hoje em dia?


Por um motivo muito simples, qualquer pessoa pode ter sua saúde mental afetada. Um evento doloroso, uma estrutura social e/ou familiar complicada, patologias provocadas não só por traumas e causas hereditárias, mas também pelo estresse do cotidiano. Além disso, a luta antimanicomial trata basicamente de garantir que todo ser humano que necessite de cuidados em saúde mental sejam tratados exatamente pelo que são, humanos.


Além disso, há um componente que não pode ser deixado de lado. A institucionalização pode ser usada como forma de apagamento, no sentido de calar aquele que é visto como um incômodo para a sociedade. Assim, a garantia dos direitos humanos também fazem parte dessa reforma. Enfim, reconhecer o que envolve o cuidado de quem precisa deles, sem tirar-lhe sua maneira de existir no mundo.




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